segunda-feira, 5 de outubro de 2015

BORDAR É UM ENCANTO

Imagem-tema da 37a Reunião Nacional da ANPEd, feito especialmente pela professora e bordadeira Olinda Evangelista.

Bordar é um encanto

Olinda Evangelista

Há mais de dez anos bordo sobre retalhos, mas nunca escrevi sobre isso. Não imagino como explicar meu bordado ou como falar sobre ele, pois o vejo como simples expressão de vida e exercício de fruição sincera.

Bordar é momento de libertar a imaginação, a cor, a textura que posso encontrar em panos, linhas e pontos. Entro em contato com minha história, muito particularmente com memórias infantis. Minha origem interiorana e rural dá o sentido inintencional aos meus bordados.

São recorrentes árvores, florezinhas, capim, passarinhos, casinhas, montanhas, sol, nuvens, chuva, rios, pintinhos, galos. Há um aroma do campo, romantizado, bucólico, nessa mistura que me remete a uma infância vivida no sítio ou perto dele. Aparecem os casamentos na roça, os interiores das casas com fogões à lenha, bancos, vasinhos, gatos, galinhas e abóboras. Aparecem também as cenas maternas, as frases ditas por minha mãe mineira. De certo modo, os bordados que assomam à minha cabeça registram episódios da vida dela que ouvi ou vivi quando criança e jovem: crochetando, lavando roupas, cozinhando, indo à cidade.

Exposição "Tempo da delicadeza" . Bordados na 37 ANPEd . 04 a 08 de outubro de 2015 . Centro de Eventos UFSC

Meus bordados são também um lugar de gratidão à escola, ao livro, aos professores, ao conhecimento. Minha trajetória escolar começou aos sete anos e aos 15, em 1970, ingressei na Escola Normal, em Londrina (PR). Entre 1970 e 2015 – 45 anos, durante os quais cheguei ao pós-doc – a escola entrou em minha vida de outro modo: primeiro como professora, depois como pesquisadora. Em muitos de meus bordados, o livro, o conhecimento, a escola, a professora estão presentes. Neles aparecem referências à luz que o saber irradia sobre o mundo, que nos permite vê-lo e talvez entendê-lo em suas múltiplas e complexas determinações: velas, lamparinas, sol, estrelas.

Há 25 anos moro na praia do Campeche, cidade de Florianópolis (SC), mas só recentemente o mar e sua exuberância apareceram em meus panos e linhas. Às vezes livros e leitores aparecem no mar. Quando mudei para Florianópolis, em 1991, conheci o fantástico bordado sobre retalhos de Dona Maria Celeste que tematiza as tradições africanas na ilha – até hoje me fascina e é grande inspiração.

Como muitas mulheres de minha geração, aprendi com minha mãe a bordar e a costurar roupinhas de boneca. Na escola também aprendi a bordar, nas aulas de Trabalhos Manuais. Igual a tantas mulheres, o trabalho me afastou do bordado e da costura. Mas não pertence apenas à mulher a arte do bordado. Homens bordam muito: Bispo do Rosário, Leonilson e João Cândido são exemplos. Paulo Luiz de Oliveira é um bordador com quem tenho compartilhado belíssimos encontros entre linhas e agulhas.

Depois de muitos, muitos, anos afastada dos paninhos, caí na provocação do bordado, em 2004, em Portugal, terra de indescritíveis criações. Lá encontrei revistas espanholas de riscos e pontos, tradicionais no Brasil, e vi muitas exposições de lenços dos namorados. Os lenços, graciosos, coloridos e com trovas de amor, me provocaram. Cedi à tentação, comprei linhas e linhos, recuperei os pontos básicos da infância – ponto atrás, caseado, cheio, correntinha – e saí bordando. Ao voltar de Portugal comecei a lidar com panos e linhas num grupo de mulheres, Respigar, a convite de Sonia Beltrame.

Mais tarde, conheci as arpilleras chilenas, marcadas profundamente pela violência da ditadura de Pinochet, os bordados peruanos, ambos com retalhos, e os bordados equatorianos. Num dos encontros do Respigar, conheci os bordados com retalhos de uma senhorinha, anônima para mim, de Porto Alegre. Meu fascínio foi completo. Nesse ano, 2005, fui paraninfa de uma turma de licenciandas em Pedagogia e bordei meu primeiro pano para elas, transformado em cartão.

Acredito piamente que a beleza deve ser compartilhada; a sua fruição nos humaniza, nos torna maiores. O bordado, essa criação humana, precisa ser visto e admirado, por isso procuro formas de mostrá-lo. Colaborei na organização de exposições coletivas, em Florianópolis, Curitiba (PR) e São Paulo (SP), organizei livros de bordados com outros amantes do bordado, procuro conhecer os que se dedicam a ele, ensino, participo da Roda de Bordado no Campeche e, em 2014, fiz uma exposição de meus bordados em Florianópolis.

 Nessa trajetória de dez anos uma mudança considero mais importante, além da variação temática. Quando comecei a bordar usava paninhos estampados, com desenhos miúdos. De certa forma, sinalizavam o sentido que queria imprimir às imagens. Um palpite sobre tecidos de Nini Beltrame levaram-me a repensar os retalhinhos. Hoje gosto mais de estampar os tecidos com meus bordados, enfeitá-los com pés de florzinhas, gatinhos, passarinhos… Parece que assim ficam mais graciosos e também engraçados. Engraçados de fato são os encontros entre mim e minha companheira de linhas e paninhos, Olga Durand, cuja firmeza no leme das viagens bordadas é admirável.

A poesia

Muitos de meus bordados nasceram da leitura de poemas. As frases poéticas suscitam imagens que são traduzidas em panos, linhas, cores e pontos, poucos. O poeta que mais bordei foi Manoel de Barros (1916-2014). Seu apreço pelo nada me deslumbrou. O bordado abaixo é da Maria Célia Marcondes de Moraes.


Os sofás

Os sofás antiguinhos compõem uma boa parte de meus paninhos. Lembram os de plástico, coloridos, da casa de minha mãe. E trazem um pouco do idílio infantil, infelizmente perdido. Chamei essa série de Sofás Encantados. No primeiro bordado o hai kai é de Bashô (1644-1694). Os crochês são de Dona Lazinha, minha mãe, hoje com 93 anos. Este sofazinho bordei para Anabea Cerisara.


A minha mãe

Minha mãe também é grande fonte de inspiração. Suas falas de mineira caipira soam musicais. Gosto de bordar cenas de sua vida, que vivi ou que a ouvi contar. D. Lazinha é um espetáculo à parte. Este bordado está na parede de sua sala.


A escola

Escola, livro, conhecimento são meus companheiros de vida. Desde que entrei na escola, aos sete anos, até hoje, aos 61, não pude me afastar das questões que a envolve. Livros são recorrentes nos meus bordados e sempre vêm acompanhados de alguma luz, a luz que o saber irradia e nos permite ter. Iluminar o mundo, papel do livro, da escola, do conhecimento, do professor. Kátia Caiado encomendou esse bordado para capa de seu livro.


A água

O azul é recorrente em meus bordados, céu ou água. Inicialmente, a cor apareceu como o rio do interior, rural, do Paraná, estado onde nasci. Poucas vezes apareceu como céu chuvoso. Muito recentemente, tornou-se mar, o mar do Campeche, o mar de Florianópolis. Mas continua rio e céu. A imagem abaixo é da casa da Terezinha Cardoso e a frase da Olga Durand.


O amor

O amor romântico, para-sempre-feliz, também é recorrente nos retalhos que bordo. Algo das princesas que ficou… Esse bordado fiz para os 40 anos de casamento de meus amigos Dolinha e Walter Schmidt.


A música

Fonte de criação inimaginável, a música abre um vasto campo de viagens.  Por mais que eu borde, nunca apanho a maravilha imensa de seus versos. Aqui está Dolores Duran na noite de seu bem. Ela agora enfeita as noites de Aníbal Brito.


A arte

O desejo de bordar encontra fios em toda parte. Na arte, o gramado é vasto. Este bordado é uma espécie de releitura do cartaz de Djanira para a peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, encenada no RJ em 1956. No fundo está a letra de Se todos fossem iguais a você, tema da peça. Fez parte da Exposição Bordando os Sete, em São Paulo. O quadro de Djanira encontra-se no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro (RJ). O bordado está em minha casa.


Florianópolis, agosto de 2015

E-mail: olindaevangelista35@hotmail.com

Texto completo na página da 37a. ANPED:
http://37reuniao.anped.org.br/bordados-olinda-evangelista/